Cidades

A desconstrução da cidade

(*) Fernando Benedito Jr.

Já na década de 60 quando foi convidado para fazer o planejamento de parte de Ipatinga, o arquiteto Rafael Hardy, integrante do escritório de Lúcio Costa, co-autor do Plano Piloto de Brasília junto com Oscar Niemeyer, desenvolveu o conceito de “cidade aberta”. Segundo este conceito, a cidade deveria ser projetada em termos de comunidade aberta, na qual, passada a fase de construção e implantação, a livre iniciativa passasse a atuar cada vez com maior intensidade.

O projeto de Hardy estabelecia que os bairros fossem implantados como unidades de vizinhança autônomas, cada um com sua própria área de comércio, lazer, saúde e educação. Previa, ainda um centro cívico-administrativo, com a prefeitura e câmara municipais, fórum, biblioteca, central de polícia e bombeiros; e um centro comunal destinado às atividades mais diversificadas como no comércio, hotéis, pensões, destinados aos funcionários e operários solteiros e à população flutuante de compradores e visitantes.

Enquanto esta parte projetada e organizada da cidade era implantada de forma planejada, outra banda crescia de maneira desorganizada, sem saneamento básico, sem projetos, com porcos e outros animais domésticos criados pelas ruas, entre as quais a rua do Comércio e a rua Araxá (onde ficava a zona boêmia), por óbvio, as mais movimentadas da incipiente cidade.

A implantação da Usiminas transformou Ipatinga num novo “eldorado” para onde convergiam levas de imigrantes de todas as partes do País e do exterior.

Desde então, se vivia num território que era o retrato fiel da contradição social. E pouco a pouco, Ipatinga de “cidade aberta”, foi se transformando em “terra-de-ninguém”.

Daí para cá, a cidade cresceu rápida e assustadoramente. As políticas públicas foram incapazes de acompanhar este desenvolvimento que atingiu seu ápice nas duas últimas décadas do século XXI e a livre iniciativa, tal qual preconizado por Rafael Hardy, assumiu o controle da situação, ou seja, do mercado e da própria cidade com toda intensidade. Tanta que parece haver um Plano Diretor para cada “desconstrutor”.

O que ocorre hoje é um crescimento predatório, uma verticalização marcada por interesses meramente especulativos, sem qualquer função social. E o pior, que não leva em conta elementos fundamentais da urbanização como a própria habitabilidade (alguns “projetos” imobiliários são verdadeiros cubículos), os bairros se transformam em “bambuzais” urbanos, com traços arquitetônicos que são um atentado visual e, sem qualquer discussão sobre as consequências sobre o meio ambiente.

Os “desconstrutores” no afã do lucro seguro da especulação imobiliária, em momento algum se preocupam com a destinação do lixo gerado pelos amontoados de pessoas, com o consumo da água, da energia elétrica, com o aumento do trânsito gerado pelo adensamento populacional. Elementos urbanísticos como espaços de lazer, de convívio social, a mobilidade, então, nem pensar.

Na verdade, promovem uma “arquitetura da destruição” do meio ambiente e dos centros urbanos para convívio humano.

E sobem os prédios às dezenas e centenas, sem qualquer função social, exceto para os próprios “desconstrutores” que se alimentam de seu lucro especulativo líquido e certo. Ao passo que o fosso do déficit habitacional se alarga.

Em Ipatinga, este debate precisa ser feito urgentemente, antes que a cidade chegue ao esgotamento total de sua capacidade de suportar este processo de descontrução. Antes que os “efeitos extremos” desta intervenção predatória se faça sentir na falta d’água, no retorno do sistema de esgoto sanitário, na paralisia do sistema de transportes, na violência urbana, enfim, no inferno que os especuladores imobiliários estão construindo no lugar da cidade de pessoas.

E tudo à vista dos poderes públicos com sua inércia conivente e silenciosa.

(*) Fernando Benedito Jr. é editor do DP.

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