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STF decide hoje destino dos fetos anencéfalos

BRASÍLIA – O julgamento da ação que pede a descriminalização do aborto de anencéfalos, marcado para hoje (11) no Supremo Tribunal Federal (STF), será um “divisor de águas no plano da opinião pública”, na avaliação do ministro Carlos Ayres Britto, que assume a presidência da Corte na próxima semana.
Para o ministro, o julgamento da ação, que chegou à Corte em 2004, será rico em reflexões e intuições. “O país tinha um encontro marcado com esse tema. Ele é divisor de águas no plano da opinião pública, repercute muito no campo da religiosidade, da saúde pública. Um tema grandioso pelo seu impacto, pelo modo de conceber a própria vida”, disse Ayres Britto após encontro com os presidentes do Senado, José Sarney, e da Câmara, Marco Maia.
“Teremos, certamente, um julgamento rico de debates, reflexões e de intuições também, porque o sentimento também conta na hora de equacionar os fatos”, acrescentou.
O STF foi provocado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que defende o aborto nos casos em que o feto tem malformação no cérebro e poucas chances de sobrevivência. Com a demora de mais de oito anos para a analisar a questão, mulheres que preferem interromper a gravidez ao saber do diagnóstico de anencefalia, atualmente, têm de recorrer à Justiça.
O processo deverá ser um dos últimos temas de grande repercussão julgados pelo STF na gestão de Cezar Peluso. Ele deixa a presidência do STF no dia 19 de abril, quando assume o ministro Carlos Ayres Britto. Veja os argumentos de quem defende a descriminalização e de quem é contra. (Agência Brasil)

 

Os fetos têm direito à vida
Brasília
– Fetos com anencefalia – um tipo de malformação rara do tubo neural – devem ser tratados por profissionais de saúde como pacientes de alta gravidade e a baixa expectativa de vida e não deve se limitar os direitos dessas crianças. Esses são alguns dos principais argumentos de obstetras e pediatras ouvidos pela Agência Brasil que se manifestam contrários ao aborto de anencéfalos. Para eles, o sofrimento dos pais não justifica a interrupção da gestação nesses casos.
De acordo com a coordenadora da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal do Hospital São Francisco, Cinthia Macedo Specian, a anencefalia é uma das principais malformações neurais detectadas em fetos em todo o mundo. O problema acontece por volta do 14º dia de gestação, quando os ossos da calota craniana se formam. Quando isso não ocorre, a massa encefálica fica exposta ao líquido amniótico e se deteriora.
Para ela, o feto anencéfalo, ao contrário do que considera o Conselho Federal de Medicina (CFM), não deve ser considerado um natimorto cerebral. “Ele tem um comprometimento severo de um órgão muito importante, mas não posso classificá-lo como um indivíduo que está em morte encefálica. Estudos mostram que todos eles têm respiração espontânea, mais de 50% conseguem mamar, sugar e deglutir o leite. Pacientes com morte encefálica não deglutem nem a saliva e não têm movimento ocular”, explicou.
A médica destacou que, em casos de anencefalia, a comunicação com o cérebro, apesar de “rudimentar e insuficiente” para manter a vida por um longo período, existe. Com um tempo de vida impossível de ser medido, fetos com a malformação, segundo ela, podem ser comparados a crianças que já nascem com graves problemas de coração e demais órgãos. “É um ser ativo que tem necessidades específicas e independentes da mãe”, acrescentou.
Membro da Comissão de Ética e Cidadania da Academia Fluminense de Medicina, o especialista em ginecologia e obstetrícia Dernival da Silva Brandão declarou não compreender como um profissional de saúde pode defender o conceito de interromper uma gestação apenas com base na malformação do feto.
Ele ressaltou que, diferentemente do que alegam muitos especialistas, a gestação de feto anencéfalo não gera riscos tão altos para a mãe e que uma gravidez de gêmeos pode ser bem mais perigosa. O problema do acúmulo de líquido amniótico, por exemplo, comum em casos em que a malformação é diagnosticada, pode ser tratado com a técnica de punção.
“Casos de crianças anencéfalas que sobreviveram após o parto são relevantes, mas o mais importante é que aquela criança está doente e precisa de tratamento. Ela não perde o direito à vida porque está doente”, disse.

Não há expectativa de vida
Brasília– Em uma gestação em que o feto é diagnosticado com anencefalia, um tipo de malformação rara do tubo neural, a morte do bebê é considerada certa e os riscos para a mulher aumentam à medida que a gravidez é levada adiante. Esses são os principais argumentos de obstetras e geneticistas ouvidos pela Agência Brasil que se manifestam favoráveis ao aborto de anencéfalos.
Para o médico e professor de ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí, Thomaz Gollop, a interrupção da gestação de um feto com anencefalia não deveria ser considerada um aborto, já que não há perspectiva de sobrevida do bebê. O termo correto, segundo ele, é antecipação do parto. “Não estamos discutindo o aborto de um feto normal. No caso da anencefalia, a situação é mais dramática”, destacou.
A frequência de casos de anencéfalos no país, de acordo com o obstetra, é de um caso para cada 700 nascidos vivos. Isso significa que em torno de 400 bebês são diagnosticados com a doença todos os anos. O Brasil, atualmente, ocupa a quarta colocação no ranking global de casos. Gollop explicou que a deficiência de ácido fólico na dieta das gestantes é responsável por cerca de 50% das ocorrências e que fatores genéticos e ambientais também influenciam nos números.
O médico lembrou que, desde 1989, a maioria dos juízes brasileiros concede autorizações para que mulheres grávidas de anencéfalos possam interromper a gestação. O feto com a malformação é classificado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) como um natimorto cerebral e, na definição de Gollop, é uma criança “completamente inviável”.
O presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, Marcial Francis Galera, concorda. “Do ponto de vista cerebral, não há funções adequadas”, explicou, ao se referir à malformação como a manifestação mais grave do fechamento do tubo neural.
Para Galera, as famílias que enfrentam esse tipo de situação devem ter o direito de escolher se desejam manter a gestação de um anencéfalo até o final ou se preferem abortar a criança. Para ele, seguir com uma gravidez em que não há prognóstico de vida para o bebê pode, muitas vezes, prorrogar o sofrimento dos pais.
“Essa discussão beira a discussão sem fim. Qual o direito da família de interromper a vida de um bebê que vai viver pouco? Qual o conceito de morte cerebral ou encefálica? É um dilema, uma discussão quase interminável”, avaliou, ao comparar o tema com outros igualmente polêmicos, como a manipulação de células-tronco embrionárias.
A secretária-geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Rute Andrade, lembrou que uma gestação de feto diagnosticado com anencefalia geralmente provoca complicações e consequentes riscos para a mulher. Isso porque o bebê acom a malformação nem sempre é capaz de deglutir o líquido amniótico, gerando acúmulo da substância e aumentando os riscos de uma distensão do útero, além de hemorragias pós-parto.

Mulheres relatam momentos de dor e de difícil decisão
Brasília
– Joana de Souza Schmitz, 29 anos, engravidou da primeira filha em 2008. A gestação, segundo a jornalista, foi planejada e chegou mais rápido que o esperado. Mas a surpresa maior veio quando se completaram as 12 semanas de gravidez – o feto foi diagnosticado com anencefalia, um tipo de malformação rara do tubo neural.
“A médica imediatamente falou de ambas as opções [abortar a criança ou seguir com a gestação], mas a gente já sabia que queria continuar com ela. Ela estava viva e havia uma esperança”, contou, em entrevista à Agência Brasil. Apesar dos relatos médicos de que o feto não seria compatível com a vida, o bebê recebeu o nome Vitória de Cristo e completa 2 anos e 2 meses de vida na próxima sexta-feira (13).
A menina nasceu com 1,775 quilo e 38 centímetros. Aos quatro meses, enfrentou uma cirurgia de fechamento do crânio, na tentativa de reduzir os riscos de infecção. “Desde que veio para casa, surgiram outros desafios. É uma criança com uma deficiência neurológica grande, mas ninguém a trata como caso perdido”. Atualmente, Vitória faz fisioterapia, fonoterapia, come alimentos sólidos e reage a estímulos por meio do uso de música e brinquedos.
“A conclusão a que a gente chega é que ela tem muita vontade de viver. Ela sente esse amor e é uma alegria ver que ela quer ficar com a gente. Não obrigamos Vitória a nascer e a viver. Foram cuidados paliativos que tomamos e ela sempre respondeu muito bem”, disse Joana. “Durante a gravidez, senti que era melhor continuar. Já a amávamos antes do diagnóstico e esse amor não podia mais diminuir.”
Patrícia Oliveira*, 32 anos, também precisou tomar uma decisão depois de receber a notícia de que o bebê que carregava na primeira gestação não sobreviveria. Na época, com 29 anos, a executiva de eventos esperava saber o sexo do bebê quando recebeu o diagnóstico de anencefalia do feto. “Naquele momento, eu desabei. O chão se abriu”, contou. Poucos dias depois, aos três meses de gestação, ela optou por interromper a gravidez.
Os pais de Patrícia vieram de São Paulo para acompanhar todos os procedimentos médicos a que a filha seria submetida. Ela precisou tomar medicamentos para induzir o nascimento do feto. Ao todo, foram 24 horas de trabalho de parto. O obstetra que cuidou do caso não permitiu que uma cesariana fosse feita para que a cicatriz física não existisse.
“Me perguntaram se eu queria ver o bebê, mas eu estava com o rosto virado. Senti apenas o contato com a pele. Pedi que não fosse feita biópsia e que ele fosse despachado junto com o lixo hospitalar.”
Depois do parto, como a placenta não havia sido expulsa, Patrícia passou por uma curetagem. Ao final, ela teve de amarrar uma faixa para que os seios não crescessem e tomou remédio para secar o leite.
Passados quase três anos, Patrícia hoje se arrepende de ter feito o aborto. “Enfrentaria os nove meses para ficar com ele por uma hora ou por alguns minutos. Mas a mulher tem que ser muito corajosa, muito autossuficiente para isso. Não seria fácil, seria uma luta diária, uma barra, como quem tem filho com paralisia infantil”, disse.
Já a microempresária Cátia Corrêa, 42 anos, defende com firmeza a decisão que tomou há 20 anos, quando interrompeu a gestação do filho que esperava, diagnosticado com anencefalia. Um ultrassom, feito no quinto mês de gravidez, identificou a malformação, além de deformações na coluna vertebral, nas pernas e nos braços do bebê.
“Meu mundo parou. Os médicos falavam, mas eu já não ouvia nada. Eles diziam que ou morreria na barriga ou nasceria e morreria no parto”, contou. Cátia foi a primeira mulher no estado de São Paulo a conseguir uma autorização judicial para abortar um feto com anencefalia. “É uma sensação muito ruim a de querer o seu filho e saber que ele vai nascer morto. Entrar na Justiça foi minha melhor decisão”, completou.
Passados quatro anos, ela decidiu engravidar novamente. Atenta a todas as precauções, a empresária tomou ácido fólico durante os três meses que antecederam a gestação e nos quatro meses seguintes. Montou o quarto do bebê, fez enxoval e se preparou para a chegada da filha. No oitavo mês, um ultrassom que não havia sido feito anteriormente por falta de plano de saúde identificou anencefalia no feto.
“Morri mais um pouco naquele dia. Saí de lá e não via nada, só chorava. Não tinha o que fazer, tinha que esperar nascer. Passados alguns dias, entrei em trabalho de parto”, relatou. A criança morreu em seguida. Cátia engravidou uma terceira vez, mas sofreu um aborto espontâneo. Hoje, vive com o marido e os quatro filhos que adotou – dois meninos de 9 e 10 anos e gêmeas que completam 5 anos em maio.

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