Cidades

Fundamentalismo religioso distorce o Plano de Educação

ACS CMI

Por Fernando Benedito Jr.

IPATINGA
– A audiência pública convocada pela Câmara de Ipatinga para discutir o Plano Municipal de Educação (PME), que descambou – sabe-se lá porque – para a questão de gênero ou “ideologia de gênero” nas escolas, serviu pelo menos para colocar o debate no lugar certo. E também para mostrar que muito mais do que questão de gênero ou educacional, para alguns setores, trata-se de debate político-partidário e religioso com avançado grau de fundamentalismo, que aproveita o atual momento de crise para tentar solapar o estado democrático de direito.

A audiência serviu também para mostrar que a escola precisa ir muito além do debate sobre gênero e ensinar bons modos aos mal educados que não sabem ouvir, razão pela qual não sabem entender, como é o caso da claque que compareceu para vaiar quem defende a diversidade. A audiência, tumultuada pelos “defensores da família”, como se os demais não tivessem família ou a estivessem desrespeitando, só avançou exatamente porque o debate recebeu a contribuição daqueles que efetivamente construíram o PME e que defendem a diversidade, a tolerância e a democracia.

No mais, foram vaias e intervenções da profundidade de um pires, como a reafirmação de alguns mitos sobre a “ideologia de gênero” (implantação de banheiro unissex nas escolas, direcionamento da escola sobre definição de sexo e orientação sexual e outras inverdades), desprovidas de qualquer sentido.

VIDENTES
Durante a audiência a secretária municipal de Educação Leida Tavares apresentou o Plano Municipal de Educação que resultou no projeto de Lei 66/2015 que está em tramitação na Câmara de Ipatinga e foi alvo de emendas sobre a “ideologia de gênero”, embora o tema não seja tratado no documento. Entretanto, numa “medida preventiva” para que o tema não venha a ser tratado posteriormente nas escolas, o vereador Nilson Lucas apresentou emendas ao texto. A primeira delas estabelece um impedimento de se adotar, “nem mesmo sob forma de diretrizes, nenhuma estratégia ou ações educativas de promoção à diversidade de gênero”. A emenda também tem como objetivo evitar que seja implementado ou desenvolvido qualquer ensino referente à ideologia de gênero e orientação sexual. Diz a proposta: “…sendo vedada a inserção de qualquer temática da diversidade de gênero nas práticas pedagógicas e no cotidiano das escolas”.

LEVIANDADE
A secretária de Educação afirmou que a polêmica em torno do tema é falsa, já que não existe qualquer menção ao assunto no PME e, tampouco, qualquer possibilidade dele ser incluído posteriormente nas diretrizes educacionais sem o aval da Câmara Municipal. “Não existe nenhuma outra diretriz para incluir a questão de gênero, e se tiver que incluir outro tema, terá que passar pela Câmara. É preciso discutir com honestidade, com verdade e, sobretudo, com solidariedade”, disse Leida Tavares, defendendo que após amplos e democráticos debates, o Plano deveria ser coroado e não ser alvo de críticas levianas.

DEBATE NECESSÁRIO
Ela disse ainda que mesmo sem constar no PME, a Secretaria de Educação não poderia se furtar a debater a questão de gênero porque trata-se de uma realidade com a qual as escolas convivem cotidianamente. “Nós temos dados alarmantes de violência no País que estão vinculados a esta questão: estupros, abuso de crianças, violência doméstica, assassinatos por motivação homofóbica; altos índices de infrequencia e evasão associados à intolerância, preconceito e bulliyng; diferenças salariais entre homens e mulheres; altos índices de gravidez na adolescência, desatenção ao índices de DSTs-Aids. São temas que estão nos telejornais, nas redes sociais, na mídia e aí dizer que a escola não pode falar disso é uma hipocrisia sobre a própria vida, porque isso faz parte da nossa vida em sociedade. Nós queremos transformar isso. Temos que debater e dar um tratamento diferente daquele que a mídia dá. A escola existe enquanto instituição para isso”, disse a secretaria de Educação.

DESIGUALDADE
Na abertura dos debates a secretária fez os cumprimentos em nome da vereadora Lene Teixeira, a única mulher na atual legislatura. “Cumprimento o Legislativo em nome da vereadora Lene Teixeira, que reflete bem dentro desta Casa o que estamos conseguindo produzir na nossa sociedade do ponto de vista de equidade. Temos entre 19 vereadores, apenas 1 vereadora. Na Mesa de Honra, apenas um mulher [a própria secretaria]. Eu penso que hoje, aqui, além da discussão que vamos fazer, é importante refletir sobre isso”, destacou, parafraseando o pedagogo Paulo Freire: “Eu concordo que a educação sozinha não transforma o mundo, mas, sem ela, tampouco, o mundo se transforma”. Conforme Leida, a educação tem que ganhar centralidade no País “e tem que ir muito além das questões que estão nos dividindo”.
– Quando falamos de gênero na escola estamos falando de igualdade e respeito, promoção da equidade, combate à violência e ao machismo, promoção da cidadania e responsabilidade social, diversidade e inclusão – explicou a secretária.

CONTUNDENTE
Uma das intervenções mais contundentes na audiência foi da professora Maura Gerbi Veiga. “Aqueles que fazem o discurso falacioso de ideologia gênero são aqueles mesmo que pregam a exclusão sobre a discussão da sexualidade e gênero dentro das escolas. Nenhuma representante do movimento de mulheres neste País e no mundo e nenhum representante dos agrupamentos LGBT colocam esta expressão [“ideologia de gênero”]. Esta expressão foi cunhada exatamente por aqueles que querem alijar este debate dentro da escola. Ao fazerem isso atuam de maneira negacionista da ciência”, disse ela.
Maura estranhou também que a Mesa fosse composta em sua maioria por religiosos e que o debate tomasse esse viés. “Me chama a atenção que na Mesa desta audiência em que se vai discutir o PME e que este tema específico [gênero] que chamou tanto a atenção, que não tenhamos biólogos, médicos, psiquiatras, psicólogos, antropólogos. Estranha-me muito que se venha falar de ideologia apenas se levando em conta a questão de sexo”, disse.

SEXUALIDADE E SEXO
Maura Gerbi destacou a diferença entre a sexualidade e sexo. “A sexualidade é exatamente aquilo que nos deu a condição de sermos diferentes dos animais, dentre outros aspectos. Ou seja, é no momento em que o homem descobre a sexualidade que ele passa a fazer uso do sexo de maneira distinta dos animais. Nos tornamos homens à medida em que descobrimos também a nossa sexualidade, porque é por intermédio dela que estabelecemos relações de afinidades, de identidade, permeada pelas relações de amorosidade. Portanto, quando discutimos sexualidade discutimos orientações, não opções. Ninguém escolhe ser hetero, homo ou o que quer que seja”, ensinou.
Ela criticou também a hipocrisia que permeia grande parte do debate sobre o tema: “Chama-me a atenção que aqueles que defendem a família e defendem Jesus Cristo venham aqui nesta Casa defender a família como sendo a única célula responsável pelo processo de formação do humano”.
Sob vaias, a educadora foi prejudicada na conclusão, mas teve tempo para dizer que “Cristo queria a vida em abundância e abundância também significa o reconhecimento das diferença e da diversidade”.

FUNDAMENTALISMO
O debate que acabou servindo também como palanque para alguns inscritos ou como forma de colocar lenha na fogueira para outros, teve outra intervenção polêmica, a do vereador Nilsin da Transnil, um “defensor da família”, que reafirmou alguns mitos sobre a chamada “ideologia de gênero”. Com um certo tom de ironia e um tanto machista, começou frisando que o último dia 15 era o Dia do Homem. E ironizou: “A respeito desse PL 666, ou melhor 66, onde fala sobre a ‘ideologia de gênero’ eu gostaria de frisar uma situação: será que eu tava errado até agora, será que o processo há milhares e milhares de anos estava errado até agora? E agora vai mudar? É isso? O conceito família tava errado? É isso que eu não aguento! É isso que eu não suporto! Não tem como engolir uma situação dessas! Se funcionou até hoje, o conceito família vai continuar funcionando. Não é nenhum grupo, não é nenhuma ideologia que vai mudar isso, não”.
Em tom não menos fundamentalista, o vereador prosseguiu:
– Pensem bem, senhores, uma criança de 10 anos, 12 anos, de acordo com o que está sendo pregado por aí, ela por si só tem a condição de escolher se vai ser “menininho” ou “menininha”. Isso é um absurdo. Sabe o que vai acontecer? A ultrassonografia não vai mais ser necessária. O pai não vai precisar mais fazer o exame para saber se é menino ou menina. Não tem lógica um negócio desses. É um absurdo querer impor esta situação a uma criança”.
“O conceito família – prosseguiu – se sobrepõe a qualquer ideologia de gênero. Por que não se trata da mesma forma os negros, o gordinho? Por que não se mobilizam desta forma? Por que o governo não os defende? É um absurdo, meus senhores. Por que portadores de necessidades especiais são chamados de aleijados, são chamados de deficientes e não existe este grupo que está aí para defendê-los?” – indagou.

DEFESA
O professor Hudson Martins Magalhães, que é homossexual, disse que defendia a discussão sobre a questão de gênero nas escolas. “Se tivéssemos nas escolas de base, do ensino fundamental, um plano que respeitasse as diferenças e a diversidade, não seríamos campeões em estupro contra as mulheres; não seríamos número um do mundo em assassinato de homossexuais. Defendo o respeito à diversidade, à tolerância, à diferença de credo, de cor, de sexualidade e de opção cultural”, disse sob vaias, lembrando que se o tema do gênero não estivesse na ordem do dia, a Casa estaria vazia.

DIREITO DA ESCOLA
A professora Ademir de Brito Rocha, diretora de escola municipal, ressaltando que o Plano não fala de “ideologia de gênero”, lembrou que foram mais de 30 dias de exaustivos debates, além da Consulta Pública que deu oportunidade na internet para cada um se posicionar. “Não pode ser tirado da escola o direito de responder às perguntas que nossos alunos nos fazem”, disse.

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