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A outra noite entre o toque de recolher e a quarentena

Violentos e estúpidos, os genocidas fascistas de ontem e de hoje que defendem a ditadura, o AI-5 e o fim da democracia, merecem ser combatidos com a mesma tenacidade

Naquela época, o toque de recolher era pior. Não era causado por um vírus invisível e passageiro, mas por metralhadoras engatilhadas que miraram o povo por 25 longos anos de uma noite escura e tenebrosa. A mesma letalidade e uma quarentena interminável. As patrulhas chegavam no bar sem avisar e colocavam todos contra parede, para a revista, armas na nuca, fratura exposta da violência descontrolada, sádica:

– Carteira de trabalho! – gritava o soldado, já enfiando a porrada. Soldado raso com autoridade de general.

Quem não tinha carteira de trabalho ia para a cadeia. Valia mais que carteira de identidade. Não importava se não tinha emprego. Tinha que ter a carteira de trabalho. Se o sujeito reclamasse, era subversivo e, daí ao pau de arara, instrumento de tortura que perdurou nas delegacias de polícia até os anos 80, era só o soldado querer. E tinha o latão, cela de isolamento, à prova de som, fétida, úmida, boa para torturar. Se achasse ruim e gritasse, tinha o eletrochoque, uma maquininha com fios presos aos testículos, afogamento, técnicas de espancamento que não deixavam marcas. Em qualquer posto policial, os instrumentos de tortura, entre os quais a palmatória, ficavam pendurados à vista de qualquer um. Era normal. Assim como os cassetetes, utilizados para espancamentos até à morte. Às vezes erravam na dose e matavam o estudante Edson Luis.

Os jornais, os poucos que insistiam em existir, ou divulgavam a toada do governo, que pode ser resumida em chavões, tipo: Brasil, ame-o ou deixe-o (uma versão antiga de Vai pra Cuba), Este é um País que vai pra frente ou Tradição, família e propriedade (velhas versões para Deus acima de tudo, Brasil acima de todos) – ou eram fechados, jornalistas presos e deportados, exilados. A liberdade de imprensa e de expressão foram extintas. A mesma coisa acontecia com artistas, escritores, poetas, qualquer um que ousasse levantar a voz contra a violência e a arbitrariedade do regime. Às vezes erravam na dose e matavam o jornalista Vladmir Herzog, Rodrigo Neto, torturavam Gabeira com sonda no canal do pênis. Violentavam as mulheres, matavam seus filhos e violentavam de novo. Muitas.

O toque de recolher não acabava nunca. Depois das 10:00h, ninguém nas ruas. Quem ousasse desafiar era preso. Ou poderia sumir num passe de mágica. Como o Juninho – foi depois, mas é ilustrativo.

Greves e manifestações eram proibidas e violentamente reprimidas. Mais de três era comício e motivo para prisão. As vidas pessoais eram reviradas e escarafunchadas até onde o DOPS e o DOI-CODI (órgãos de repressão da polícia política) achassem que deveriam ir. E iam fundo. O Estado violava a privacidade até o limite da desonra. Às vezes, ministravam uma overdose.

O abuso de autoridade era a lei.

Os presos não tinham direito a telefonema, a advogado, a habeas corpus. Afinal, vivia-se uma regime de exceção, que havia eliminado todas as liberdades, todas as leis, todas as instituições democráticas (o Congresso foi fechado, deputados oposicionistas presos, torturados, mortos ou exilados, e mataram Rubens Paiva), Supremo Tribunal Federal e demais órgãos da justiça foram fechados e os ministros, desembargadores, prefeitos e governadores eram nomeados pelos militares no poder, seus aliados, claro, o clero reacionário (como os pastores que hoje apoiam Bolsonaro), empresários, multinacionais, integrantes de esquadrões da morte (atuais milicianos). Essa gente.

Quem se opunha ao regime, era comunista. Como hoje. A mesma ameaça invisível, como o coronavírus.

Em Ipatinga, na greve da Usiminas, em 1963, dezenas foram mortos com rajadas de metralhadoras, tiros de .50.  Até hoje teme-se falar no assunto. Mataram nas cidades, no campo, às centenas, aos milhares.

É isso o que querem esses aí que foram às ruas e portas dos quartéis pedindo a volta do AI-5, dos militares, da ditadura. É isso o que querem esses aí que vão às ruas espancando quem não quer abrir o comércio, quem não quer se contaminar com o vírus.

Pois precisam e merecem ser combatidos a ferro e fogo, com todas as forças, para que mais não pereçam.

(*) Fernando Benedito Jr. é editor do Diário Popular.

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