Opinião

Adeus, irmão!

(*) Jakson Goulart

“Que as palavras que eu falo não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor, apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos. Porque metade de mim é o que ouço, mas a outra metade é o que calo…” (Oswaldo Montenegro)

Jairderson Moreira Goulart era seu nome de pia. Para a família, será sempre o Neném, alusão ao fato de ser o caçula de sete irmãos e um dos netos mais novos do “Sô” Levindo e da dona Tita, que gostavam de ouvir suas histórias e, vez ou outra, puxavam suas orelhas por causa de alguma peraltice. Os primos da sua faixa etária gostavam da sua companhia, mesmo aqueles que, na infância, foram vítimas de alguma “trolagem”. As tias que, na infância, o xingavam em defesa dos filhos que eram convencidos a comer pimenta e minhoca, na fase adulta o consultavam sobre ferramentas tecnológicas.

Até os quatro, cinco anos de idade, um velocípede era sua companhia frequente, comprado com dinheiro da venda de mangas que os irmãos mais velhos colhiam no quintal de casa. Cabelos loiros, compridos, pedalava por toda a casa, com incrível destreza. Apresentava-se como o “Vinga”, o “Rei do Vinguidem” como o pai o chamava, com um misto de satisfação e de preocupação com o futuro daquele garoto.

Mesmo criança, gostava de conversar com adultos. Aprendeu, ainda pequeno, a consertar rádios, liquidificadores, enceradeiras, tanquinhos de lavar roupas e outras máquinas e engenhocas. Fabricava também suas geringonças. Devia ter uns 12 anos de idade quando convenceu o proprietário de uma eletrônica a deixá-lo passar um tempo na sua oficina, com a aquiescência da mãe, claro. Logo montou um transmissor de rádio, dentro de uma caixa de sapatos, e divertia-se fazendo transmissões que eram captadas em todo o quarteirão do bairro onde morava. Quando soube que havia montado uma “rádio pirata”, ficou orgulhoso do seu feito. Gostava de desafios!

Revezava-se entre a eletrônica e um aviário também perto de casa, onde, aos domingos, ajudava a matar e depenar frangos em troca de alguns pés, pescoços e sambiquiras. Aos domingos, perto do horário de almoço, voltava para casa, todo sujo, cheio de penas, carregando, com orgulho, sacolas de pertences de frangos. De vez em quando, ganhava algumas moedas.

Logo, cismou de criar coelhos. Começou com casal de orelhudos, algumas chinchilas, e logo tinha uma coelhada, criada em gaiolas no quintal de casal. Todos os dias, ao acordar, como num ritual, saía para cortar capim para os bichos, pelos quais tinha imenso carinho. Tanto que, certa vez, logo no início da sua criação, triste por ver o seu coelhinho primogênito doente, não titubeou e, sem dizer nada a ninguém, embarcou num ônibus e foi à procura de um veterinário – era o dr. Lélio Costa e Silva, já na época uma referência como profissional e pessoa. Tinha pouco mais de 13 anos, e sua alegria ao voltar para casa com o coelho e os conselhos e receitas do especialista foi similar à preocupação da mãe e de toda a família com o seu sumiço. Em pouco tempo o menino que criava coelhos passou a receber pessoas em casa – homens, mulheres e outras crianças –, à procura de filhotes e orientações sobre os tratos com aqueles bichinhos que gostavam de cenouras, mas que nunca botaram ovos, muito menos de páscoa.

O menino cresceu. Pegou gosto pela pescaria. “Tenho o curso”, gostava de dizer, embora, na beira de uma lagoa ou de algum riacho, mais conversasse que tirasse peixes da água. Quem gostava de acompanhá-lo nessas aventuras pisciculturísticas era a mãe, ela sim, tinha as manhas da pesca.

Continuou criando coelhos, mexendo com válvulas e transistores, mas seus olhos brilhavam quando via ou lia qualquer coisa sobre máquinas mais potentes, velozes e pesadas. Mesmo sem possuir computador, um luxo caro para a época, logo tornou-se um especialista também em informática. “Fuçava” máquinas, desmontava equipamentos e conversava sobre hardware e software numa época em que isso era somente para iniciados. Fazia consertos, ensinava a operar programas de computador, editava imagens, aparecia sempre com alguma novidade e chamava a atenção de muita gente que via nele um menino prodígio. E era, mesmo!

Ainda que sem emprego formal, sempre conseguia algum troco com o seu suor. Um vizinho o convidou para trabalhar de “office boy” no seu escritório de Contabilidade, e aí ele ganhou o mundo de vez. Orgulhava-se e orgulhava à família. “Esse menino vai longe!”, era quase um vaticínio.

Já havia ultrapassado a faixa dos 15 anos de idade quando começou a se interessar por motos e carros. Para desespero da mãe, comprou uma Yamaha DT 180 e foi aumentando as cilindradas com o passar dos anos. Levou alguns tombos, mas nada além de arranhões nos joelhos e braços. Não satisfeito, comprou o seu primeiro carro, um Puma, descolado como poucos veículos de quatro rodas. Ainda assim, continuava inquieto, sempre em busca de alguma descoberta.

“Conversado” e curioso, uma nova porta abriu-se para ele quando o amigo Kadyll – então Villete – sugeriu ao irmão que o levasse para trabalhar no “Diário do Aço”, na época em que o jornal, pioneiro no interior de Minas Gerais, trocou as máquinas de escrever pelos computadores. Essa novidade, então presente apenas nos jornalões das capitais, exigia mão-de-obra especializada para desenvolver a tecnologia hoje presente em qualquer graficazinha por esse mundo afora. Saíam de cena o linotipo, o prelo, o past up e outras técnicas – hoje primitivas – de edição e impressão gráfica e chegavam o off set e as impressoras “composer”, com suas esferas e margaridas, e o diagramador saiu da prancheta e da “mancha” para a tela do computador. E lá estava ele!

Logo no início dessa era de informatização do jornal, foi preciso trazer um técnico japonês de Belo Horizonte, o Shikida, para ensinar aos capiaus do interior como operar as novas tecnologias que chegavam. Hotel e alimentação por conta da empresa, honorários à altura do status de gênio, o japonês durou pouco. Logo procurou a direção do jornal, e, com uma dose assustadora de humildade e de realidade, disse que não tinha mais o que fazer em Ipatinga: “Aquele menino da diagramação fica fazendo perguntas, questionando o tempo todo, parece que sabe mais do que eu. Acho que ele pode resolver, e eu virei aqui apenas esporadicamente para alguma eventualidcade.” Ficaram amigos, e, toda vez que vinha de BH, Shikida trazia uma garrafa de saquê, uns LPs (disco de vinil, no formato long play, o famoso “bolachão”) e fitas K-7 (alguém se lembra?) de Osvaldo Montenegro e Joan Baez – nunca entendi o gosto musical desse japonês.

Foi então que, para o público externo, deixaram de existir o Jaiderson e o Neném. Nascia o Pisquila, apelido herdado do personagem impagável do hoje Luiz Carlos Kadyl, que na época havia acabado de publicar, em parceria com o saudoso K. Zoberto, “O (pior) Livro do Século”. O Pisquila das crônicas do jornal era espirituoso, brincalhão, tinha resposta para tudo, muito parecido com o homônimo real, que gostava de contar piadas, de brincar, de zombar das situações, de dar gargalhadas e de sair com os amigos. Encaixou como uma luva, e logo o Pisquila virou uma grife das artes gráficas, profundo conhecedor de corel draw, photoshop, pagemaker, win designer e outros programas afins. De modo empírico, estava à frente de muitos profissionais com muitos anos de estrada. Qualquer pessoa que o procurasse, em busca de qualquer informação, era tratada como amiga e uma dose elevada de paciência para compartilhar seus conhecimentos. Metia-se, de vez em quando, pelo mundo da gastronomia.

Aqui, cabe uma ressalva em tom de autocrítica. Por alguns anos, fui seu chefe no “Diário do Aço”. Havia entre nós uma admiração mútua, o que não impedia que eu pegasse no seu pé. Exigia muito dele, numa forma – que depois reconheci ser equivocada – de mostrar aos colegas de trabalho que nossa relação não era de nepotismo ou de qualquer tipo de privilégio. Os colegas me questionavam, sempre reconhecendo nele a capacidade que eu parecia ignorar. Fui estúpido, reconheço!

O jeito brincalhão que alguns, como eu – equivocadamente –, confundiam com irresponsabilidade, era só um traço da sua personalidade. Era também uma pessoa carinhosa, de bom coração, um companheiro muito solidário. Tanto que sua trajetória no “Diário do Aço” foi interrompida no dia em que um colega de trabalho foi demitido. Não pensou duas vezes e também pediu demissão, para, junto com o amigo Denilson, seguir novos caminhos. Comprou uma impressora a laser, dois computadores e alugou uma sala na avenida 28 de Abril, no centro de Ipatinga, no antigo “JG Shopping Center”. Seu primeiro cliente, se me lembro bem, foi o Sindicato dos Comerciários de Ipatinga. Depois vieram o Sindicato dos Bancários, entidades, profissionais liberais e empresas de pequeno e médio portes. Surgia, então, a “Art Publish”, ainda hoje uma referência em serviços gráficos no Vale do Aço.

O pequeno bureau do Pisquila cresceu. A chegada de outro amigo, o Waldecy, após uma temporada nos Estados Unidos, injetou novo ânimo e alguns dólares. A “Art Publish” mudou de endereço, logo virou também uma gráfica, e o próximo passo foi a compra de um terreno na avenida Londrina, no Veneza, revitalizada e valorizada após um grande pacote de obras executado nos governos de Chico Ferramenta e de João Magno. Era a sonhada sede própria, do tamanho dos sonhos daquele menino, único da família nascido em hospital, mas que preferia ter vindo ao mundo pelas mãos de uma parteira, como os seis irmãos, e ter na sua Certidão de Nascimento a naturalidade de Cipotânea em vez de Coronel Fabriciano.

Como profissional, Pisquila sempre foi muito respeitado. Tinha muitos clientes fiéis. Em anos eleitorais, era procurado por candidatos de partidos diversos e distintos – da esquerda à direita –, de Ipatinga e de outras cidades, e nunca escondeu que gostava do PT. Sentia-se petista. Fazia diagramações e artes de materiais para campanhas de conhecidos e desconhecidos, virava noites em busca do formato ideal, por puro prazer. Não fazia questão de pagamento pelo seu trabalho, o custo era só o dos materiais gráficos – papel, tinta etc. Gostava de conviver com os “vermelhinhos”, com os “barbudinhos da CUT e do PT”, como eram chamados por uma parcela que se pretendia elite.

Casou-se, teve dois filhos, a Maria Letícia e o Davi, inteligentes e sagazes como pai. Era meu, meu afilhado e meu compadre – eu, padrinho da Letícia, e ele, da Clarice. Nunca se preocupou com dinheiro, nunca se meteu na administração do próprio negócio, e, como aconteceu antes, desfez a sociedade na “Art Publish” e partiu para um novo desafio: a G.Com. Foi uma nova gênese profissional, levando consigo alguns clientes e muitos amigos que sempre passavam pela agência para um bom bate papo e beber um cafezinho com o Pisquila. Ficou desgostoso pelo rompimento com os antigos sócios, passou a beber mais que o de costume, adoeceu, teve várias idas e vindas ao hospital.

No dia 17 de abril de 2022, em pleno domingo de Páscoa, às 6h14, pouco mais de um ano e um mês após a morte da mãe, Pisquila deu seu último suspiro. Ao seu lado, zeloso, o irmão Jaider, que passou a última noite com ele em substituição à irmã Nízia, sua segunda mãe e que sempre se desdobrou nos cuidados com ele, desde sempre. As outras irmãs, Neide e Neuza, o irmão mais velho, o Dedé, e eu tentamos fazer o que era possível, dentro de nossas limitações de toda ordem. Não foi suficiente, ele partiu. Ainda guardamos o luto, com uma tristeza e uma saudade incontidas do nosso irmão caçula, mas confortados pelas inúmeras demonstrações de carinho recebidas pela família. A todos, nossos sinceros agradecimentos!

 “A vida não passa de uma oportunidade de encontro: só depois da morte se dá a junção. Os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace.” (Victor Hugo, poeta e ativista pelos direitos humanos francês em “Os Miseráveis”)

(*) Jakson Moreira Goulart é jornalista e irmão de Jaiderson Moreira Goulart.

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